sexta-feira, 29 de abril de 2011

Porque estou numa dessas noites...

De dia não se via nada, mas p'la tardinha já se apercebia gente que vinha de punhaes na mão, devagar, silenciosamente, nascendo dos pinheiros e morrendo nelles. E os punhaes não brilhavam: eram luzes distantes, eram guias de lençoes de linho escorridos de hombros franzinos. E a briza que vinha dava gestos de azas vencidas aos lençoes de linho, azas brancas de garças caídas por faunos caçadores. E o vento segredava por entre os pinheiros os mêdos que nasciam.

E vinha vindo a Noite por entre os pinheiros, e vinha descalça com pés de surdina por môr do barulho, de braços estendidos p'ra não topar com os troncos; e vinha vindo a noite céguinha como a lanterna que lhe pendia da cinta. E vinha a sonhar. As sombras ao vê-la esconderam os punhaes nos peitos vazios.

A lua é uma laranja d'oiro num prato azul do Egypto com perolas desirmanadas. E as silhuetas negras dos pinheiros embaloiçados na briza eram um bailado de estatuas de sonho em vitraes azues. Mãos ladras de sombra leváram a laranja, e o prato enlutou-se.

Por entre os pinheiros esgalgados, por entre os pinheiros entristecidos, havia gemidos da briza dos tumulos, havia surdinas de gritos distantes - e distantes os ouviam os pinheiros esgalgados, os pinheiros gigantes.

A briza fez-se gritos de pavões perseguidos. E as sombras em danças macabras fugiam fumo dos pinheiraes p'lo meu respirar.

Escondidas todas por detraz de todos os pinheiros, chocam-se nos ares os punhaes acêsos. Faz-se a fogueira e as bruxas em roda rezam a gritar ladainhas da Morte. Veem mais bruxas, trazem alfanges e um caixão. Doem-me os cabellos, fecham-se-me os olhos e quatro anjos levam-me a alma... Mas a cigarra em algazarra de alêm do monte vem dizer-me que tudo dorme em silencio na escuridão.

Veiu a manha e foi como de dia: não se via nada.

José Almada Negreiros

Sem comentários: