domingo, 7 de abril de 2013

Palavras sábias que retratam a situação actual do povo português

Se ao menos a chuva parasse, talvez se conseguisse ver algum raio de luz no horizonte - "alguma coisa de polinésico nesta devassidão em que vivemos", como escreveu Durrell em "Quarteto de Alexandria". Talvez que, por exemplo, pudéssemos ver na notícia da demissão do ministro Miguel Relvas um mínimo de justiça cívica que qualquer cidadão tem o direito de esperar, em troca de tanta chuva. Mas, sabemos que ele não se demitiu por desconforto ou pudor, e sim porque os factos, a sua insanável batota académica, o obrigaram a tal, ao fim de um penosos ano a assobiar ao vento e à chuva. Mas vimos que o primeiro-ministro, chorando na hora da despedida, enalteceu os seus inestimáveis serviços prestados à causa pública - tais como a grandiosa "reforma autárquica", reduzida à fusão de umas quantas freguesias; o fabulosos plano de combate ao desemprego jovem, consumado, vá lá, numas centenas de estágios conseguidos, face aos 90 000 jovens que emigraram por falta de trabalho, desde que o Governo se preocupou com eles; ou o "novo modelo de gestão da RTP, em cujos estudos contratados, segundo um ex-adjunto do ex-ministro, este investiu 1300 milhões de euros... para a gaveta. O percurso governamental de Miguel Relvas honra o seu percurso académico. Só a história o julgará, diz ele, parafraseando o indefeso Fidel Castro. Todavia, e à falta de uma Sierra Maestra no currículo, chamou a atenção do país para os cinco anos dedicados a servi-lo - dos quais, três confessadamente a conspirar no partido para trazer Passos Coelho aonde ele agora está. O país agradece. Que vá em paz nesta "nova etapa da vida" que anunciou e que não é difícil imaginar qual seja. Cada país tem o José Dirceu que merece. 
E, enquanto Relvas tombava de exaustão por tanto serviço público, um seu relacionado e colega de avental, o magnifico espião Silva Carvalho, encontrava o seu lugar de conforto na Presidência do Conselho de Ministros. O homem que saiu do serviço público para o privado - e para onde, segundo a acusação-crime que enfrenta, levou os segredos e métodos em que havia sido treinado para assim melhor se valorizar perante o novo patrão -, o homem que, acusado, teve o desplante de pedir que o libertassem do segredo profissional a que se obrigara enquanto espião regressa tranquilamente ao "serviço público", dois anos depois, aos abrigo da lei e como se entretanto nada se tivesse passado. Como se o Estado fosse uma casa de meninas, sempre de portas abertas para acolher quem não se safou na rua.
Na mesma RTP que, para grande indignação de 140 000 cidadãos peticionários, acolheu José Sócrates, vejo, como se de coisa absolutamente natural se tratasse, o autarca-modelo Isaltino Morais desafiar, em nome do povo que o elegeu e reelegeu, a infame conspiração da justiça que já lhe negou os 42 recursos interpostos contra a sua pena de prisão. Mas um mérito ele tem: demonstrou como, com tempo, dinheiro e consciência leve, se pode pôr a ridículo todo o sistema de justiça e toda a justiça. Santo Deus, tantas e tantas reformas, tantos e tão ilustres legisladores envolvidos e nem sequer se consegue parir uma lei que diga quando é que um processo acabou de vez!
Manhã de quina-feira, abrigo-me de uma tromba de água debaixo do toldo de uma mercearia de Campo de Ourique. Penso para comigo que não sei porque anda Paulo Portas a vender o sol lá fora, quando só temos chuva. Ao lado, dois proprietários de mercearias, sem nada que fazer lá dentro e ninguém que atender, conversam cá fora."Ao menos, as barragens estão cheias - diz um. A EDP vai baixar a conta da luz!" O outro sorri: "Sim, sim, mais depressa vais ver o porco a voar!" Eu sorrio também. O malandro do Sócrates, afinal, tinha razão: 70% da energia eléctrica consumida em 2012 vêm de renováveis, 29% das eólicas e o resto das hídricas. Energia limpa, gratuita, inesgotável. Nossa. O problema são os contratos que ele e outros antes dele assinaram e que asseguram às queridas empresas de electricidade um lucro garantido e crescente, faça sol, chuva ou nevoeiro. "Estranhamente", escreveu a entidade reguladora, a liberalização do mercado em vez de conduzir a uma baixa de preços, como seria normal, conduziu a uma subida. Estranhamente, quando não é preciso recorrer nem ao carvão nem a petróleo importados, os preços, em vez de baixarem, sobem. Estranhamente, quando o consumo cai, os preços também sobem, em vez de descerem. Há uma mão invisível escondida atrás da mão invisível que nos juraram que tudo regularia "naturalmente". E, estranhamente, há uma situação excepcional e de emergência nacional que legitima o assalta fiscal, a derrogação da boa-fé contratual do Estado em inúmeras situações e até os apelos ao Tribunal Constitucional para suspender parte da doutrina económico da Constituição, mas que não permite suspender nem revogar o contratos que garantem as tais "rendas excessivas" que até à troika escandalizam. E, enquanto a chuva ameaça submergir esta cidade outrora branca e outrora bonita, ocorre-me uma estúpida pergunta: e não seria melhor voltar a nacionalizar a EDP e a GALP? Eu sei que não, infelizmente: iríamos pagar em impostos o inevitável prejuízo que elas, nacionalizadas e superiormente geridas pelos mesmos ou pelos primos dos mesmos, acabariam por dar - e também teríamos de lhes pagar prémios de gestão. Não há saída: este país não foi feito para a mão invisível.
E eis que, por entre as tempestades e trombas de água em que estamos submergidos, o ministro dito da Economia vislumbra uma luz que promete salvá-lo: querem remodelá-lo também, diz ele, porque "está a mexer em grandes interesses". Você deu por isso na conta de electricidade? Ou será que os grandes interesses a que ele estoicamente resiste é um miserável aumento do salário mínimo em 15 euros, que até os patrões pedem?
Tudo o que seja culpar a herança de Sócrates e liquidar a herança de Sócrates, sobretudo a boa (a aposta nas energias renováveis, na investigação científica, na qualificação profissional, nas novas tecnologias), parece esgotar a imaginação dos colegas de Álvaro Santos Pereira. Não há outro programa que não esperar as visitas trimestrais da troika e confiar no regresso aos mercados, mesmo que a juros que garantem a ruína até à geração dos meus netos. Nem sequer coisas tão simples e gratuitas como assegurar um concurso decente para a candidatura ao MNE ou dar-se ao trabalho de decretar a morte oficial do aborto ortográfico consegue atrair a atenção dos governantes. O vazio político de Pedro Passos Coelho, a sua gritante impreparação para governar, para escolher gente capaz, para liderar qualquer coisa semelhante a um governo, assusta e dá vontade de exigir a sua excelência presidencial que, ainda que contrariado, meta as mãos na massa e ponha fim a este pesadelo. Mas viramo-nos de lado e vemos a alternativa que o aparelho socialista produziu e ousa propor ao país: eu não a queria nem para governar o condomínio do meu prédio. É por isto que a chuva não vai embora. Como se os deuses chorassem o nosso infortúnio.

Palavras de Miguel Sousa Tavares no Expresso deste Sábado

2 comentários:

Anónimo disse...

Já agora aproveito para dizer que acho o seu blog muito interessante. ;)

Anónimo disse...

Já agora aproveito para dizer que acho o seu blog muito interessante. ;)