Que honra é esta que sobrepõe o dever de pagamento da dívida aos ricos ao dever de alimentar os pobres?
São umas vinte e vão todas em fila indiana, de mãos dadas como se estivessem numa roda, com os seus bibes vermelhos, todas com chapéus na cabeça, com uma professora a abrir o cortejo, outra no meio, outra a fechar. Está frio à sombra, mas o sol aquece e a fila avança alegremente pelo Parque das nações, em direcção ao Pavilhão do Conhecimento, ou talvez ao Oceanário. Terão uns cinco ou seis anos, riem-se, saltitam e chilreiam sem parar. A imagem é banal mas é assim. As crianças desta idade chilreiam como passarinhos. As professoras estão sérias, com a linguagem corporal da decisão e da atenção, a dar instruções, a contar as crianças, a vigiar os perigos, carros que podem aparecer, uma criança tresmalhada, o chapéu que voa, mas as crianças chilreiam despreocupadas. Vão passear, está um dia lindo, têm camisolas debaixo dos bibes para o frio e um chapéu na cabeça para o sol, estão com os amigos, alguém as conduz, as protege, lhes vai dar o almoço, o lanche, talvez guloseimas, uns carinhos, um penso se esfolarem o joelho. Vão abrir os olhos de surpresa, de alegria, de excitação. Paro no passeio a olhar as crianças que chilreiam. Tudo na sua atitude denota a segurança da confiança. Está tudo bem. Os adultos sabem. É só dar a mão.
E se não soubéssemos? Se os adultos não soubessem? Se não fizéssemos a mínima ideia do que estamos a fazer? Ou se a esmagadora maioria de nós tivesse desistido de compreender, de agir, de melhorar o mundo, de viver, de qualquer outra coisa que não fosse o que se passa na nossa sala de estar? E se houvesse apenas, poucos, que soubessem o que se passa no mundo e que tivessem poder para intervir e se esses se estivessem a borrifar para a fila de crianças de bibe vermelho que avança a chilrear pelo Parque das Nações?
O que podemos prometer hoje a estas crianças? Que o seu mundo vai ser mais seguro que o nosso? Mais livre? Mais solidário? Mais feliz? Mais bonito? Mais humano? Mais criativo? O que podemos prometer nesta semana de Natal às filas de crianças de bibe vermelho de Atenas, de Madrid, de Dublin, ou de Amesterdão e de Berlim?
Não há nada, absolutamente nada, tristemente nada, que sinta que o Governo do meu país está a fazer pelas crianças de bibe vermelho. O mundo que lhes está prometido é um mundo de menos liberdade, de menos conforto, de menos trabalho, de menos segurança. de menos saúde, de menos educação, de menos acesso à cultura, de menos cidadania, de menos humanidade, de menos respeito pelos outros e pela Natureza. De mais desigualdade, de mais competitividade, de mais violência, de miséria. Não apenas para o ano ou para o ano seguinte, mas para os próximos dez anos, vinte anos, para sempre.
Para o Governo do meu país, os financeiros sem rosto que sobem os juros da dívida que dizem que temos são mais importantes que as crianças de bibe vermelho. Ainda que esses financeiros sem rosto tenham roubado os títulos da dívida a alguém, ainda que os tenham forjados, ainda que tenham sido eles a convencer os governantes a reduzir os impostos às empresas para depois termos de lhes pedir dinheiro emprestado, ainda que nos cobrem um juro agiota, ainda que subam o seu juro agiota sem razão, ainda que condenem à miséria crianças de bibe vermelho por todo o mundo, ainda que condenem a morrer à fome crianças que nem sequer têm um bibe vermelho. Que honra é esta que sobrepõe o dever de pagamento da dívida aos ricos ao dever de alimentar os pobres? Que honra é esta que aceita aumentos de juros de 7 por cento para as dívidas que se devem as dívidas que se devem aos ricos mas apenas um aumento de 3 por cento para as pensões dos mais pobres dos pores? Não é nenhuma honra. É apenas indignidade. É apenas falta de vergonha. É apenas desumanidade.
A mecanização e a informatização permitiu dispensar milhões de trabalhadores e os pobres deixaram de fazer falta. Mais: são acusados de ser a causa da crise. Desempregados que consomem subsídios, doentes que consomem medicamentos, velhos que consomem pensões, grávidas que consomem licenças de maternidade, parasitas todos. Solidariedade? Apenas um obstáculo a contornar no caminho da produtividade. Mas há soluções para reduzir o parasitismo. Basta ir reduzindo o parasitismo. Basta ir reduzindo o Estado social que o alimenta e que, de qualquer forma, não temos dinheiro para pagar. Sim, porque depois de pagar a dívida aos bancos não sobre nada.
O discurso hegemónico é simples e condena as crianças de bibe vermelho à vida triste que já vivemos há quarenta anos, como lembrava há dias Isabel do Carmo.
Mas enquanto via a fila de crianças de bibe vermelho avançar à beira-Tejo, sem poder deixar de sorrir parvamente, como não podemos deixar de fazer quando vemos uma fila de crianças de bibe vermelho a chilrear como se o mundo não admitisse uma única preocupação, tive a certeza que nada disto ia acontecer, porque não era possível ver uma fila de crianças de bibe vermelho e deixar que isso acontecesse. Não era possível que o mundo que lhes vamos deixar fosse esta apagada e vil tristeza. E pensei na quantidade de gente que, em Portugal e no resto da Europa e no resto do mundo se mobiliza para que isso não aconteça, nos movimentos cívicos, nas artes, nos partidos e nas organizações religiosas. Já começámos a perceber como funciona o sistema da dívida, a armadilha dos juros crescentes, a matilha de agências de rating e dos bancos, empenhados em reduzir a solidariedade ao Estado Mínimo que deixa todos os negócios na mão de que já controla os mercados, a mentira do falso mercado da falsa concorrência, a mentira dos cartéis e da corrupção, dos impostos que são apenas para os trabalhadores e dos paraísos fiscais que são apenas para os ricos. E pensei que essa era a melhor prenda de Natal possível. A ideia de que é possível mudar tudo e que vamos começar já. Ainda esta semana.
Texto escrito por José Vítor Malheiros
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